A PROSA ROMÂNTICA: BERNARDO GUIMARÃES

No Comments
     Bernardo Joaquim da Silva Guimarães (Ouro Preto, 15 de agosto de 182510 de março de 1884) foi um romancista e poeta brasileiro, conhecido por ter escrito o livro A Escrava Isaura. É filho de João Joaquim da Silva Guimarães, também poeta, e de Constança Beatriz de Oliveira Guimarães. Casou-se com Teresa Maria Gomes de Lima Guimarães, e tiveram oito filhos: João Nabor (1868-1873), Horário (1870-1959), Constança (1871-1888), Isabel (1873-1915), Affonso (1876-1955), José (1882-1919), Bernardo (1832-1955) e Pedro (1884-1948).Formou-se na Faculdade de Direito de São Paulo, em 1847, e nesta cidade tornou-se amigo dos poetas Álvares de Azevedo (1831-1852) e Aureliano Lessa (1828-1861). Os três e outros estudantes fundaram a Sociedade Epicureia.

   Na época em que participou da criação da Sociedade Epicureia, Bernardo Guimarães teria introduzido no Brasil o bestialógico (ou pantagruélico), que se tratava de poesia cujos versos não tinham nenhum sentido, embora bem metrificados. Usando do burlesco, o satírico e o nonsense, esta poesia faz de Bernardo Guimarães um precursor brasileiro do Surrealismo, conforme Haroldo de Campos[1], embora este ainda o considere um romancista medíocre.
  A maior parte dessa poesia não foi publicada porque era considerada pornográfica, e se perdeu. Para alguns críticos, como o citado Haroldo de Campos, o melhor do escritor seria o bestialógico. Um exemplo dessa produção (não-pornográfica) é o soneto Eu Vi dos Pólos o Gigante Alado.
 Histórico das obras
    O seu livro mais conhecido é A Escrava Isaura. Foi publicado pela primeira vez em 1875, pelaGarnier. Conta as agruras de uma bela escrava branca que vivia em uma fazenda do Vale do Paraíba, na região fluminense de Campos.
   O romance foi levado à tela da Rede Globo de Televisão em 1976 e em 1977 e à da Rede Record em 2004 (Ver Escrava Isaura (1976) e A Escrava Isaura (2004), respectivamente). A versão da Globo foi exportada para cerca de 150 países. Na China, protagonizada por Lucélia Santos, a Escrava Isaura foi assistida por mais de 1 bilhão de pessoas. Uma edição do livro naquele país teve pelo menos 300 mil exemplares. O romance é considerado por alguns críticos como antiescravista. José Armelim Bernardo Guimarães (1915-2004), neto do escritor, argumenta que, se a história fosse de uma escrava negra, não chamaria a atenção dos leitores daquela época para a questão da escravidão. O livro de Bernardo Guimarães mais bem aceito pela crítica é O seminarista, cuja primeira edição é de 1872. Permanece atual porque questiona o celibato dos padres. Conta a história de um fazendeiro de Minas Gerais que obriga o seu filho a ser padre. Eugênio, o filho, ama desde criança Margarida, filha de uma agregada da fazenda. Ele tenta abandonar o Seminário de Congonhas em Minas Gerais, mas o pai dele, o capitão Antunes, inventa que Margarida se casou. Eugênio se ordena. Mas ele se endoidece no dia em que volta a sua cidade para rezar a sua primeira missa e se depara, na igreja, com um cadáver, o da Margarida, que tinha estado muito doente.
    Duas das poesias mais conhecidas são consideradas pornográficas, embora não sejam do período bestialógico. Trata-se do O Elixir do Pajé e A Origem do Mênstruo. Ambas foram publicadas clandestinamente em 1875.
Em 1852, tornou-se juiz municipal e de órfãos de Catalão (Goiás). Exerceu o cargo até 1854. Em 1858, mudou-se para o Rio de Janeiro. Em 1859, trabalhou como jornalista e crítico literário no jornal Atualidade, do Rio de Janeiro. Em 1861, reassumiu o cargo de juiz municipal e de órfãos de Catalão. Foi quando, ao ocupar interinamente o juizado de Direito, Bernardo Guimarães convocou uma sessão extraordinária do júri, que liberou 11 réus porque a cadeia não estava em condições de abrigá-los. Em 1864, volta para o Rio de Janeiro. Em 1866, é nomeado professor de retórica e poética do Liceu Mineiro, de Ouro Preto. Em 1867, casa-se. Em 1873, lecionalatim e francês em Queluz (Minas Gerais). Em 1881, é homenageado pelo imperador Dom Pedro II. Morre pobre em 10 de março de 1884.
Obras
Cantos da Solidão (1852)
§  Inspirações da Tarde (1858)
§  O Ermitão de Muquém (1858)
§  A Voz do Pajé (drama – 1860)
§  Poesias Diversas (1865)
§  Evocações (1865)
§  Poesias (volume que reúne as quatro obras de versos anteriores publicadas e mais o poema  A
  Praia de Botafogo – 1865)
§  Lendas e Romances (contos – 1871)
§  O Garimpeiro (romance – 1872)
§  História e Tradições da Província de Minas Gerais (crônicas e novelas – 1872)
§  O Seminarista (romance – 1872)
§  O Índio Afonso (romance – 1872)
§  A Escrava Isaura (romance – 1875)
§  Novas Poesias (1876)
§  Maurício ou Os Paulistas em São João del-Rei (romance – 1877)
§  A Ilha Maldita ou A Filha das Ondas (romance – 1879)
§  O Pão de Ouro (conto – 1879)
§  Folhas de Outono (poesias – 1883)
§  Rosaura, a Enjeitada (romance – 1883)
§  O Bandido do Rio das Mortes (romance terminado em 1905 por Teresa Guimarães, mulher do autor).
§  Dança dos Ossos
   Obras não-publicadas
§  Os Inconfidentes (drama – 1865)
§  Os dois Recrutas (drama – cerca de 1870)
§  As Nereidas de Vila Rica ou As Fadas da Liberdade (drama – cerca de 1870)
§  A Catita Isaura (drama – 1876).
§  A História de Minas Gerais (encomendada pelo imperador D. Pedro II, em 1881).
Academia Brasileira de Letras
Bernardo Guimarães foi homenageado como patronato da cadeira 5 da ABL, que teve como fundador Raimundo Correia e na qual tiveram assento figuras exponenciais como Osvaldo Cruz e Rachel de Queiroz.
Também foi homenageado como patrono da cadeira número 15 da Academia Mineira de Letras, cujo fundador foi Dilermando Cruz[2]

 

Bernardo Guimarães – Wikipédia, a enciclopédia livre - pt.wikipedia.org

A IMPORTÂNCA DE BERNARDO GUIMARÃES
Ilustração e educação: uma leitura de Bernardo Guimarães


Luciano Mendes de Faria Filh
Prof. Dr. da Universidade Federal de Minas Gerais - Faculdade de Educação - Coordenador do PPGE.
Este trabalho busca explicitar facetas importantes da cultura e do processo de escolarização no Brasil e, mais especificamente, em Minas Gerais, ao longo do oitocentos. Ele acompanha outros em que temos tentado trabalhar com fontes diversas (jornais, relatórios de diretoras e inspetores escolares, legislação escolar) buscando apontar para a importância destas para a história da educação e produzir uma inteligibilidade própria a cada uma delas. O texto traz à tona a discussão sobre a produção literária de um dos principais intelectuais mineiros do século XIX – o romancista Bernardo Guimarães -, buscando destacar a importância dos intelectuais no processo de escolarização nos últimos dois séculos.Palavras-chave: Minas Gerais. Literatura. História. História da Educação.
................................................................................................................................
· Opinião da crítica
   Apesar de reconhecerem o enorme sucesso, de público, da produção literária de Bernardo Guimarães, a crítica e a história literária mostram-no como autor de uma obra bastante controversa. Romântico por excelência, o lugar e a importância da obra de Bernardo Guimarães é objeto de discussões entre nossos principais historiadores da literatura e críticos literários. Seja ressaltando a qualidade superior de suas poesias em relação aos seus romances e novelas, seja acentuando o caráter inovador de seus escritos ou chamando a atenção para a apropriação feita por ele de modelos românticos nacionais ou estrangeiros, sua obra é, ainda hoje, objeto de atenção de autores como Luiz Costa Lima (1991), Flora Süssekind, dentre outros.
   Segundo Lima (1991, p. 24) “para o cânone oficial relativo ao romantismo brasileiro, Bernardo Guimarães é poeta de segunda ordem.” Para demonstrar tal afirmação, passa em revista as produções de Silvio Romero e José Veríssimo, chamando a atenção para a permanência desta posição na história da literatura brasileira. Também Nelly Novaes Coelho (1982. p. 22), chama a atenção para o que chama de “equívocos da crítica” no tratamento dado ao romancista Bernardo Guimarães, equívocos estes que iriam desde a crítica à sua suposta pouca contribuição à literatura nacional, pois seria autor de apenas dois livros – A escrava Isaura e O seminarista -, até a identificação de Guimarães como um imitador de José de Alencar e, por outro lado, como um “contador de histórias” mais do que um verdadeiro escritor.
Ilustração e educação
   A questão da ilustração, da ciência e do iluminismo está marcadamente presente em toda a produção de B. Guimarães. Ela está presente, inicialmente, no poema O devanear do céptico, de 1852. O poema é um grande lamento à saída da ingenuidade pela utilização da razão e pela descoberta da dúvida. A ciência, aqui, é vista como um veneno que, depois de provado, traz a incerteza e a impossibilidade da tranqüilidade. Dizia o poeta:
“Oh! feliz quadra aquela, em que eu dormia
Embalado em meu sono descuidoso
No tranqüilo regaço da ignorância;
Em que minh’alma, como fonte límpida
Dos ventos resguardada em quieto abrigo,
Da fé os raios puros refletia!
Mas num dia fatal encosto à boca
A taça da ciência; - senti sede
Inextinguível a crestar-me os lábios;
Traguei-a toda inteira, - mas encontro
Por fim travor de fel; - era veneno,
Que no fundo continha, - era incerteza!
Oh! desde então o espírito da dúvida
Como abutre sinistro, de contínuo
Me paira sobre o espírito, e lhe entorna
Das turvas asas a fúnebre sombra!
De eterna maldição era bem digno
Quem primeiro tocou com mão sacrílega
Da ciência na árvore vedada,
E nos legou seus venenosos frutos.” (Poesias. p. 41)
 ..................................................................
Já no poema Dilúvio de Papel, cujo título, não por acaso, vem seguido do esclarecimento, Sonho de um jornalista poeta, não é apenas a razão como elemento esclarecedor e confortador do homem que é posta em dúvida pelo poeta; também o é uma das principais formas de colocá-la em circulação: o impresso. Neste poema, possivelmente escrito entre 1859 e 1860, época em que B. Guimarães trabalhava no jornal Atualidade, no Rio de Janeiro, o autor faz, talvez, uma das críticas mais contundentes à cultura que se respirava naquela segunda metade dos XIX que se iniciava. Familiarizado com os jornais e com a prática jornalística que, desde há muito, prometia ilustrar e educar o povo, poeta acaba por chamar a atenção, ao cabo, para o quanto parecia ser efêmera tal promessa, apesar do grande número de publicações.
Inicialmente, o narrador afirma à Musa que abandonara a poesia porque...
“Esse ofício, que ensinas, já não presta;
Vai tocar tua lira em outras partes;
Que aqui nestas paragens só têm voga
Comércio, indústria e arte.” (Poesias. p. 114)
E a Musa, por sua vez, o castiga enviando um estranho castigo: um dilúvio de papel, o qual atinge todo o mundo e ameaça o narrador, que assim o descreve:
“E através das ondas, que recrescem
A cada instante, e os ares escurecem
De Mercantis, Correios e Jornais,
De Ecos do Sul, do Norte, de Revistas,
De Diários Constitucionais,
De Coalizões, de Ligas Progressistas,
De Opiniões, Imprensas, Nacionais,
.........................................................
E continua:
“Para a triste humanidade
Não resta mais esperança;
O dilúvio cresce, e avança,
Leva tudo a tropel!...
Já imensa papelada
As terras e os mares coalha;
Já o globo se amortalha
Em camada de papel.
Mas sobre elas resvalando
Vai jogando meu batel
Pobre idade testemunha
Desta pavorosa cheia
Que dos tempos na cadeia
Vê quebrar-se o extremo anel!...
Oh! século dezenove,
Ó tu, que tanto reluzes,
És o século das luzes,
Ou século do papel?!...” (Poesias. p. 122)
No sonho do poeta, os jornais, que tanto prometiam iluminar, bem ao espírito de um século das luzes nos trópicos, mostravam-se, nada mais nada menos, do que uma grande ameaça para a triste humanidade.
Também nos romances essa questão aparece. Ao tratar do assunto, o autor traz para dentro de sua obra toda a tensão que marca as discussões no momento em que escreve, notadamente com relação à religião. Uma das indagações que parecem animar B. Guimarães é se sobre a possibilidade de compatibilizar a ilustração com as verdades e práticas religiosas.
No romance Maurício, num determinado momento da história, quando os portugueses intencionavam prender o índio Irabussú para dele saber o local de uma rica mina e, assustados, pensando que ele havia se transformado em gato, chamam-no de duende, bruxo e de outros adjetivos, o narrador comenta: “Estou certo que o leitor não será tão simples e crédulo como aqueles bons campônios de Portugal, que tanto acreditavam em bruxarias e visões sobrenaturais...” (MAURÍCIO. p. 138)
Noutra ocasião, na introdução ao Ermitão... ao falar da prática das romarias e das capelas existentes para onde os romeiros sistematicamente se dirigiam, o narrador chamava a atenção para a atenção para o fato de que:
“Os filósofos do século, os apóstolos da descrença riem-se com desdém dessas ingênuas e tocantes crenças do povo. Todavia seus engenhosos raciocínio, seus sistemas transcendentes, não podem substituir essa fé viva e singela, que alenta e consola o homem do povo nos trabalhosos caminhos da vida. Embora envolvida no cortejo de mil superstições grosseiras, de mil tradições absurdas, deixemos-lhe essa fé, que o acompanha desde o berço, que bebeu com o leite materno, e que o consola em sua hora extrema. Seja embora um erro, é um erro consolador, que em nada prejudica ao indivíduo nem à sociedade; a esses filósofos poderíamos responder parodiando aqueles versos que Camões põe na boca de Adamastor:
E o que vos custa tê-los nesse engano
Ou seja sombra, ou nuvens, sonho ou nada?... (Maurício. p. 2607)
Vê-se que, sem deixar de conceber tais práticas como superstições grosseiras, de mil tradições absurdas e como um grande erro, ressalta-se o papel desta fé, aprendida desde o berço, para o consolo do crente, animando-o nos trabalhosos caminhos da vida. Neste sentido, a crítica dirigida ao filósofos não poderia deixar de ser mais contundente: o que a suas críticas à religião do povo poderia oferecer a este mesmo povo como consolo?
No entanto, se havia uma indulgência para com as práticas religiosas do povo, nem sempre acontecia o mesmo com a igreja. Como veremos mais à frente ao tratar da educação de Eugênio, o herói de O seminarista, B. Guimarães colocava em circulação uma contundente críticas às formas encontradas pela igreja para educar as novas gerações e, mesmo, a algumas das mais importantes instituições católicas, como o celibato. Também em suas poesias satíricas os religiosos apareciam de forma muito pouco elogiosas. Veja-se, por exemplo, o poema A orgia dos duendes (GUIMARÃES,1992. p. 31-41).
Neste poema o autor relata uma estranha “reunião” que acontece a meia-noite em uma floresta. Sua primeira estrofe diz o seguinte:
“Meia-noite soou na floresta
No relógio de sino de pau;
E a velhinha, rainha da festa,
Se assentou sobre o grande jirau..”
A seguir o poeta vai nomeando quem chega: o Lobisomem, a Taturana, a Getirana¸ a Mamangava, o Galo preto, a Mula-sem-cabeça e vários outros interessantes convidados. Após a chegada de todos, cada um se apresenta. Vejamos algumas das apresentações em que os religiosos são citados:
“Taturana
Dos prazeres de amor as primícias
Do meu pai entre os braços gozei;
E de amor as extremas delícias
Deu-me um filho, que dele gerei.
..................................................
Getirana
Por conselho de um cônego abade,
Dous maridos na cova soquei;
E depois por amores de um frade
Ao suplício o abate arrastei.
[...]
Galo-preto
Como frade de um santo convento
Este gordo toutiço criei;
E de linda donzelas um cento
No altar da luxúria imolei.
 [...]
Mula-sem-cabeça
Por um bispo eu morria de amores
Que afinal meus extremos pagou
Meu marido, fervendo em furores
De ciúmes, do bispo matou.
[...]
Crocodilo
Eu fui papa; e aos meus inimigos
Para o inferno mandei c’um aceno;
E também por servir aos amigos
Té nas hóstias botava veneno.
..................................................................
Como se vê, aos olhos do poeta, o comportamento social do clero não era muito recomendável!!!!!
· A educação das mulheres
Pode-se delinear um número bastante grande de imagens de mulheres nas obras analisadas. As mulheres são mães, irmãs, amantes, escravas, índias, anjos, criaturas divinas, Evas, crianças, loucas, virgens, prostitutas, professoras, trabalhadoras.... Ao construir, nos romances, as imagens de mulheres, B. Guimarães não deixa de explicitar os aspectos relacionados à sua educação e, ao fazê-lo, configura um certo modelo de educação feminina para a época. Tal modelo, bastante complexo, contrasta muitas vezes com aquele comumente vulgarizado pela literatura acadêmica como incluindo apenas, quando muito, o ler, escrever e costurar. Nos livros de B. Guimarães as mulheres sabem mais ler do que escrever, apesar de muitas das heroínas dominarem ambas as competências, e todas sabem costurar; mas a educação das mulheres, como veremos, abrange muito mais do que isto.
Iniciemos pela escrava Isaura. Em certo momento do livro, Malvina, a esposa de Leôncio, repreendendo a Isaura por seu canto triste, diz:
“Não gosto que a cantes, não, Isaura. Hão de pensar, que é maltratada, que és uma escrava infeliz, vítima de senhores bárbaros e cruéis. Entretanto, passas aqui uma vida, que faria inveja a muita gente livre. Gozas da estima de teus senhores. Deram-lhe uma educação, como não tiveram muitas ricas ilustres damas que conheço”. (Isaura. p. 10)
O que seria, no entanto, tal educação? Comentando que a mulher do comendador cuidou da educação de Isaura, diz-se:
“À medida que a menina foi crescendo e entrando em idade de aprender, foi-lhe ela mesma ensinando a ler e escrever, a coser e a rezar. Mais tarde procurou-lhe também mestres de música, de dança, de italiano, de francês, de desenho, comprou-lhe livros, e empenhou-se enfim em dar à menina a mais esmerada e fina educação, como faria com uma filha querida.” (Isaura. p. 17)
No caso de Isaura, uma escrava, no entanto, como se poderia prever, a educação poderia ser vista, por alguns, como um perigo. Pelo menos para Leôncio, era. Assim, depois de Isaura dizer que não lhe faltarão meios e coragem de ficar livre do seu senhor, o próprio Leôncio, como se sabe, este diz: “Eis o proveito que se tira de dar educação a tais criaturas! Bem mostras, que és uma escrava, que vives de tocar piano e ler romances. Ainda bem que me prevenistes; eu saberei gelar a ebulição desse cérebro escaldado.”(ISAURA. p. 74)
Em outros romances também se fala da educação da mulheres. Lúcia, de O garimpeiro, sabe ler e escrever e utiliza tais competência para se comunicar, às escondidas, com seu amado Elias, o qual sabe ler, escrever e contabilidade, lê Rousseau e sabe a história das cavalhadas, dentre outros assuntos.
Também no romance A filha do fazendeiro, explicita-se como se deu a educação da heroina:
“Além das perfeições que recebera da natureza, Paulina tinha tido uma educação acurada e a mais completa que naqueles tempos em nosso país se podia dar a uma menina. Ainda em tenros anos tinha sido enviada para um colégio em S. João del-Rei, onde a gentil sertaneja recebeu com muito aproveitamento lições de leitura, música, dança, e aprendeu as maneiras de uma sociedade um pouco mais polida do que era a Uberaba naqueles tempos.” (História. p. 20-1)
Em O Seminarista, enquanto o menino era enviado para o colégio, assim era feita a educação da menina Margarida: “À medida que a menina ia crescendo, a senhora Antunes, como boa madrinha que era, ia-lhe ensinando o que a sua tenra idade comportava, e desde os cinco anos lhe pôs nas mãos a agulha e o dedal.”(SEMINARISTA. p. 17)
Depois de passar dois anos no colégio, Eugênio põe-se a ensinar Margarida a ler. Tal situação é descrita da seguinte forma:
“Eugênio não mentia, quando disse à sua mãe que ensinava a ler a companheira de infância. O viandante, que por ali transitasse aquela, época, teria por vezes a ocasião de contemplar à sombra das paineiras junto à pontezinha de que já falamos, um curioso e interessante grupo: um esbelto rapagote de cerca de doze anos assentado na grama, e com um braço passado sobre o ombro de uma gentil menina um pouco mais nova, apontando as letras do alfabeto. (Seminarista. p. 20)
Em outros romances, imaginava-se a educação das meninas índias, ora pelo brancos, ora no interior da própria comunidade indígena. No caso da primeira situação, ressalta-se a educação de Judaíba pela branca Leonor, em Maurício e da mestiça Jupira, que vivera longos anos entre os índios, por seu pai. O primeiro caso é assim descrito pelo narrador:
“Como sabemos, apenas o velho bugre partiu com sua escolta, Leonor, que condoída da sorte da pobre cabocla se interessava vivamente por ela, a tinha tirado da prisão, em que até ali estivera encerrada em companhia de seu pai, Leonor tomou a seu cuidado transfigurá-la completamente; deu-lhe alguns vestidos mais decentes, penteou ela mesma os cabelos ásperos e corredios da índia, perfumou-se e trançou dando-lhes a cor luzidia da plumagem do assú, enfeitou-lhe o colo, a fronte e os braços com algumas jóias e adereços de pouco valor, e em poucas horas transformou a brinca e seminua virgem da floresta em linda e faceira rapariguinha. (Maurício. p. 221)
Logo depois, no mesmo romance, a educação da jovem índia é justificada de outra forma: pela falta de irmão e pela busca companhia para e pela jovem branca.
“Nestas conjunturas veio-lhe à idéia, que a jovem indígena poderia bem até certo ponto suprir o vácuo, que em torno dela reinava, e encher-lhe mais agradavelmente o tempo, que tão enfadonho lhe corria. Desvelar-se-ia em educá-la para a sociedade; ensinar-lhe-ia a ler, cozer, a rezar; a menina seria sua discípula, sua catecúmena, sua irmã mais moça. Isto ao mesmo tempo que seria para ela um honesto passatempo, que lhe ia tornar mais suportável a ociosa e solitária existência, que levava, seria também uma obra meritória aos olhos de Deus e dos homens.” (Maurício. p. 223)
No que se refere a Jupira, tal como seus companheiros de tribo e de vida errática, a menina não se sujeitava facilmente às práticas educativas e, porque não, disciplinares impostas por seu pai. Nota-se, no texto abaixo, que, aqui também, atuava o modelo anterior. Chama a atenção o fato de que o pai de Jupira ensina-lhe a escrever, o que não era muito comum nos romances de B. Guimarães: mais de uma vez narra-se o aprendizado e a prática da leitura pelas mulheres, mas raramente o mesmo acontece com a escrita.
“A menina crescia linda, engraçada, e travessa como uma ariranha. Tinha muita vivacidade e penetração, mas os instintos selváticos prevaleciam nela, e foi com muita dificuldade, que seu pai no fim de sete anos conseguiu que ela adquirisse alguns costumes de civilização, andasse vestida, cosesse, lesse e escrevesse algumas coisa. Muitas vezes a iam agarrar pelos matos quase nua, trepada como macaco na mais altas árvores, ou nadando nos profundos remansos do Rio Verde em risco de ser devorado por algum jaú ou sucuri.”(Tradições. p. 146)
Não deixa de ser contrastante com a educação das mulheres no civilizado, dentro da obra de B. Guimarães, a forma como ele constrói a educação da jovem índia Guaraciaba. Conduzida sob a responsabilidade de um homem, feiticeiro Andiara, a educação desta jovem nada lembra o recato da educação das meninas brancas. Dizia-se que:
“Andiara votava paternal afeição à filha do cacique, sobre cuja infância velara desde o berço com a mais terna solicitude. Tendo ela ainda em tenra idade perdido a mãe, a linda e donosa Naumá, Andiara, parente e amigo fiel e extremoso de Oriçanga, a cuja família julgava estar ligada a glória da nação dos Chavantes, tomou a si o cuidado de educar e desenvolver os dotes do corpo e do espírito da gentil menina, última progênie de uma raça de heróicos caciques, e em quem repousava toda a esperança a tribo. Ele a tinha sempre junto a si, e a conduzia pela mão em seus giros pelas florestas; ele entretecia com suas própria mãos vistosos canitares de plumas ondulantes para sombrear-lhe a fonte, e lhe engastava o cinto da araçóia de palhêtas de ouro nativo e de brilhantes pedrarias. Também a exercitava na arte de encurvar o arco, de brandir o tacape, defender com os ombros as águas das torrentes, ou impedir rapidamente com o remo um piroga a resvalar pela ondas azuladas de seu rio natal; ensinava-lhe as danças e cantigas sagradas, e os hinos de guerra, dando-lhe uma educação toda varonil na esperança de torná-la um dia uma heroina capaz de elevar a nação ao mais subido auge de glória e de grandeza.” (Ermitão. p. 80)
· A educação dos homens
No que se refere à educação dos homens, é interessante notar que, B. Guimarães, homem escolarizado, vai construir poucas possibilidades para as histórias educacionais para seus personagens masculinos: ou terão uma educação bastante solta ou serão educados nos seminários. Ambas mostrar-se-ão bastante desastradas, como veremos. Parece confirmar tal perspectiva o fato de que, dentre seus personagens masculinos, o que melhor sorte tem, o Elias, d’O garimpeiro, que sabe ler e escrever, sabe matemática e contabilidade, é leitor de Rousseau e sabe em profundidade, como já vimos, a história das cavalhadas, sobre sua educação nada se diz.
Veja-se, no entanto, como foi a educação de alguns de seus outros personagens masculinos. Maurício, personagem título de um dos romances, tendo fiado órfão foi adotado por Diogo Mendes, o capitão-mor que, posteriormente, transferiu-se para as Minas Gerais. Assim se descreve a sua educação:
“Era um belo menino, cheio de vivacidade e inteligência. Interessando-se vivamente pelo órfão, que de dia em dia desenvolva novos dotes e espírito, e excelentes qualidades de coração, Diogo Mendes o fez entra par o colégio dos jesuítas, afim de ser educado para o estado clerical. Aí esteve por três ou quatro anos, durante os quais aqueles padres, apreciando a inteligência claro, o espírito vivaz e penetrante, e a índole audaciosa, que o menino então adolescente ia revelando em sumo grau, achando que ali havia massa para se formar um excelente missionário de Loiola, empregaram grandes esforços em atraí-lo ao seu grêmio. Foi tudo embalde; o menino não havia nascido para a roupeta. Havia nele um elemento, que se opunha diametralmente à obediência passiva, essa condição cordial imposta aos discípulos de S. Inácio. Era um extremo amor da independência, uma rebeldia indomável contra todo e qualquer jugo. (Maurício. p. 38)
Já Leôncio, o vilão d’A escrava Isaura, teve a seguinte educação:
“Leôncio achara desde a infância nas larguezas e facilidade de seus pais amplos meios de corromper o coração extraviar a inteligência. Mau aluno e criança incorrigível, turbulento e insubordinado, andou de colégio em colégio, e passou como gato por brasas por cima de todos os preparatórios, cujos exames todavia sempre achavas à sombra do patronato. Os mestres não se atreviam a dar ao nobre munífico comendador o desgosto de ver seu filho reprovado”.(Isaura. p. 13)
Como jovem rico que era, seu percurso educacional foi marcado ainda pela matrícula na escola de medicina, da qual saiu por desinteresse, e na faculdade de direito de Olinda, na qual também não conclui o curso. Em seguida, vai para a Europa, onde ao invés de estudar fica passeando e tomando contato com ambientes e figuras poucos recomendáveis socialmente, segundo o narrador. ... percursos dos filhos das gentes ricas. Para trazê-lo de volta, o pai acena com um bom casamento. Segundo o narrador:
“Leôncio mordeu a isca e voltou à pátria um perfeito dândi, gentil e elegante como ninguém, trazendo de suas viagens, em vez de conhecimentos e experiência, enorme dose de fatuidade e petulância e um tão perfeito traquejo da alta sociedade, que o tomaríeis por um príncipe. Mas o pior era que, se trazia o cérebro vazio, voltava com a alma corrompida e o coração estragado por hábitos de devassidão e libertinagem”.(Isaura. p. 14)
Também a educação de Gonçalo, d’O Ermitão..., é marcada pela ausência da direção familiar, numa reiterada representação sobre a educação dos jovens ricos na obra de B. Guimarães, como já vimos. No romance, a apresentação do personagem se dá da seguinte forma:
“Era filho de pais abastados e de família; porém educado à larga, abandonado desde a infância a si mesmo, sempre em meio de más companhias, dotado além de tudo de índole inquieta e fogosa, este rapaz, que poderia ser um homem de bem e útil à sociedade, se uma educação regular tivesse dado salutar direção aos instintos de sua natureza, foi-se tornando um valentão famoso, talhado a molde para as galés ou para o patíbulo.
Gonçalo, que assim se chamava, aplicou-se com ardor desde criança ao manejo de armas de toda a qualidade, a domar animais bravos, a caçar, a nadar, enfim a toda sorte de exercícios do corpo os mais rudes e perigosos.
E de feito neste ponto sua educação foi completa; ...”(Ermitão. p. 33)
Eugênio (O seminarista) saiu de casa aos 9 anos para estudar na cidade vizinha, vinha em casa no fim de semana. Pouco mais de dois anos depois, ele é enviado para o seminário. A mudança do ambiente de casa para o novo regime educativo, é descrito como uma passagem do espaço aberto para o fechado.
“Eis o nosso herói transportado das livres e risonhas campinas da fazenda paterna para a monótona e austera prisão de um seminário no arraial de Congonhas do Campo, de barrete e sotaina preta, no meio de uma turba de companheiros desconhecidos; como um bando de anus pretos encerrados em um vasto viveiro.” (Seminarista. p. 21)
Tal idéia é retomada logo depois, utilizando-se, agora, da idéia do cenário onde o artista, ou os padres, traçam ou moldam sua criação (ou criatura).
“Eis o novo cenário, a que havemos transportado o nosso herói. O espetáculo não podia deixar de ser curioso e interessante, e nem a nova fase da vida em que ia entrar deixaria de ter encantos para um menino que tanto gostava das práticas de devoção religioso, e tão forte tendência mostrava para o misticismo. Contudo, aquele filho do sertão, acostumado a percorrer os campos e bosques da fazenda paterna, não pode a princípio deixar de estranhar a severa reclusão e imprescritível regularidade daquela vida monótona e compassada do seminário. Mas, o gênio pacato e a extrema docilidade de Eugênio, ajudados pela bossa da beatividade ou veneratividade, que tinha muito desenvolvida, fizeram com em menos tempo do que qualquer outro se habituasse e tomasse gosto mesmo pelo seu novo gênero de vida, como se fosse o elemento m que nascera”. (Seminarista. p. 23)
Observe-se que, não por acaso, será este menino “pacato” e “dócil” que, ao contrário dos outros que tiveram uma educação desregrada, terá um fim trágico – a loucura – justamente por não conseguir desvencilhar-se do projeto para ele arquitetado pela família e pela igreja.
· A educação física, moral e intelectual
Finalmente, outro elemento para o qual podemos chamar a atenção é para a interdependência estabelecida por B. Guimarães entre a educação física, a moral e a intelectual. Como sabemos tal perspectiva, sistematizada, dentre outros, por Kant, era muito conhecida no Brasil dos oitocentos através da leitura de diversas obras, notadamente das de H. Spencer.
        A partir de meados do século XIX, ganhou força nos variados discursos sobre a educação a idéia de que no entrelaçamento das três dimensões básicas da “educação integral” – a moral, a física e a intelectual – um dos elementos determinantes era o fator hereditário. Este caldo de cultura aparece obviamente na obra de B. Guimarães. Assim, n’A escrava Isaura, depois de falar da paixão que Leôncio passou a cultivar por Isaura, apesar de ser casado com um jovem e linda mulher, diz-se que “Leôncio era um digno herdeiro de todos os maus instintos e da brutal devassidão do comendador.” (Isaura. p. 21)
No entanto, é n’O seminarista, ao falar da educação de Eugênio, que o autor vai produzir uma impressionante e, ao mesmo tempo, muito negativa visão da educação nos colégios internos, notadamente nos seminários. Como que estabelecendo um diálogo com as correntes higienistas da época, o narrador assim fala da educação recebida por Eugênio no seminário, bem como do resultado na mesma sobre o rapaz.
“No fim de algum tempo, Eugênio estava magro, pálido, alquebrado, que mais parecia uma múmia ambulante. Tinha-se de todo amortecido o brilho de seus grandes olhos azuis, e profunda palidez cobria-lhe o rosto magro. O adolescente de dezesseis anos parecia um ancião às bordas da sepultura.
Estes estragos físicos não deixaram também de repercutir de um modo deplorável no moral e na inteligência. ...” (Seminarista. p. 36)
“À força de trabalhos e insônias, de orações, jejuns e mortificações continuadas, caiu em tal estado de prostração, de atonia física e moral, que embotando-se-lhe de todo a sensibilidade e quase extinto o lume da inteligência, o rapaz ficou como que reduzido a um autômato.”(Seminarista. p. 36)
“Eis como uma educação fanática e falseada, abusando de certas pré-disposições do espírito, lança naquela alma o germe de uma luta íntima e cruel, que fará o tormento de toda a sua vida e o arrastará talvez à última desgraça, se a misericórdia divina dele não se amercear.” (Seminarista. p. 37)
Noutra ocasião, ao comentar o acanhamento de Eugênio quando, em visita à sua família, não consegue conversar com seus entes mais queridos, o narrador volta à carga e diz:
“A educação claustral é triste em si e em suas conseqüências: o regime monacal, que se observa nos seminários, é mais próprio para formar ursos do que homens sociais. Dir-se-ia que o devotismo austero, a que vivem sujeitos os educando, abafa e comprime com suas asas lôbrega e geladas naquelas almas tenras todas as manifestações espontâneas do espírito, todos os vôos da imaginação, todas as expansões afetuosos do coração.
O rapaz que sai de um seminário depois de ter estado ali alguns anos, faz na sociedade a figura de um idiota. Desazado, tolhido e desconfiado, por mais inteligente e instruído que seja, não sabe dizer duas palavras com acerto e discrição, e muito menos com graça e afabilidade. E se acaso o moço é tímido e acanhado por natureza, acontece muitas vezes ficar perdido para sempre.” (Seminarista. p. 41)
Podemos perceber, pois, uma visão bastante crítica acerca da educação nos colégios religiosos. Tal educação, ao fim e ao cabo, acabava por mutilar a própria humanidade, não apenas impedindo a realização de legítimos projetos de vida dos sujeitos a ela submetidos mas, corroendo o caráter, a inteligência e a saúde física dos meninos.
Para finalizar, é preciso ressaltar que, de um modo geral, assim como Bernardo Guimarães utiliza-se de suas várias sensibilidades e competências – de bacharel, de professor, de juiz, de literato, de jornalistas, ... – para construir seus personagens, montar suas tramas e levar avante suas narrativas, ele participa também de toda as ambigüidades e contradições de seu tempo: a crença no progresso, na ciência e na ilustração de um modo geral, tem que conviver com a presença marcante da religião, as idas e vindas da vida política brasileira, a presença da escravidão... e de tudo o mais que marca aquele tão conturbado século XIX. Mais ainda: podemos dizer que, como literato, B. Guimarães, propôs formas peculiares de mostrar aquele momento e de compreender as relações sociais. Neste sentido, a produção aqui analisada, mostra um autor profundamente comprometido com o seu tempo e, ao mesmo tempo, profundamente cindido sobre as relações, os valores, os desejos, as esperanças compartilhados e abraçados. Também por isso, seus personagens e suas histórias nos fascinam tanto até hoje.

 

Revista do Centro de Educação - UFSM - coralx.ufsm.br


A ESCRAVA ISAURA
 Por Frederico Barbosa e  Sylmara Beletti

Parte superior do formulário
Parte inferior do formulário
INTRODUÇÃO
   Escrito em plena campanha abolicionista (1875), o livro conta as desventuras de Isaura, escrava branca e educada, de caráter nobre, vítima de um senhor devasso e cruel. 
     O romance A Escrava Isaura foi um grande sucesso editorial e permitiu que Bernardo Guimarães se tornasse um dos mais populares romancistas de sua época no Brasil. O autor pretende, nesta obra, fazer um libelo anti-escravagista e libertário e, talvez, por isso, o romance exceda em idealização romântica, a fim de conquistar a imaginação popular perante as situações intoleráveis do cativeiro. O estudioso Manuel Cavalcanti Proença observa que: 
     “Numa literatura não muito abundante em manifestação abolicionistas, é obra de muita importância, pelo modo sentimental como focalizou o problema, atingindo principalmente o público feminino, que encontrava na literatura de ficção derivativo e caminho de fuga, numa sociedade em que a mulher só saía à rua acompanhada e em dias pré-estabelecidos; o mais do tempo ficava retida em casa, sem trabalho obrigatório, bordando, cosendo e ouvindo e falando mexericos, isto é, enredos e intrigas, como se dizia no tempo e ainda se diz neste romance.” 
O NASCIMENTO DO ROMANCE
    A publicação de romances em folhetins - os capítulos aparecendo a cada dia nos jornais - já era comum no Brasil desde a década de 1830. A maior parte destes folhetins era composta por traduções de romances de origem inglesa, como as histórias medievais de Walter Scott, ou francesa, como as aventuras dos Três Mosqueteiros, de Alexandre Dumas. Emocionados, os brasileiros acompanhavam as distantes aventuras de um Ivanhoé ou de um D’Artagnan, transportando-se, em espírito, para os campos e reinos da Europa. 
    Embora fizessem sucesso junto ao público, os primeiros romances brasileiros, publicados em folhetim, não deixavam de ser considerados, pelos literatos “sérios”, como “uma leitura agradável, diríamos quase um alimento de fácil digestão, proporcionado a estômagos fracos.” O romance, esse gênero literário novo e “fácil”, que foi introduzido na literatura brasileira por autores como Joaquim Manuel de Macedo e Teixeira e Sousa, ganharia status de literatura "séria" com a obra de José de Alencar.
A descrição do cenário nacional 
    O público interessava-se, portanto, cada vez mais por um romance de aventuras românticas que apresentasse o cenário brasileiro. O grande sucesso de público de O Guarani (1857), de José de Alencar, em que as aventuras de Peri e sua amada Cecília se desenrolam em meio à exuberante natureza fluminense, estimula os escritores a se voltarem para a apresentação da ambientação tipicamente nacional em suas obras. 
     Na década de 70 essa tendência nacionalista haveria de se consolidar, com o surgimento das obras de Franklin Távora (1842-1888), autor de  O Cabeleira (1876) e o Visconde de Taunay (1843-1899), autor de Inocência (1872). É nesse cenário literário que aparece, em 1875, um dos maiores sucessos de público do período: A Escrava Isaura, que explora uma das questões mais polêmicas da sociedade brasileira da época, a escravidão. 
O ENREDO 
    A história se passa nos “primeiros anos do reinado de D. Pedro II”, inicialmente em uma fazenda em Campos dos Goitacazes (RJ). Isaura, escrava branca e bem-educada, é assediada pelo seu senhor, Leôncio, recém-casado com Malvina. Isaura se recusa a ceder aos apelos de Leôncio, como já fizera, no passado, sua mãe, que, por ter repelido o pai de Leôncio, fora submetida a um tratamento tão cruel que, em pouco tempo, morrera. 
    Para forçá-la a ceder, Leôncio manda Isaura para a senzala, trabalhar com as outras escravas. Sempre resignada, suporta passivamente o seu destino, porém, não cede a Leôncio, afirmando que ele, como proprietário, era senhor de seu corpo, mas não de seu coração: “ - Não, por certo, meu senhor; o coração é livre; ninguém pode escravizá-lo, nem o próprio dono.” Leôncio, enfurecido, ameaça colocá-la no tronco. 
    No entanto, seu pai, ex-feitor da fazendo, consegue tirá-la de lá e foge com ela para Recife (PE). Em Recife, Isaura usa o nome de Elvira e vive reclusa numa pequena casa com seu pai. Então, conhece Álvaro, por quem se apaixona e é correspondida. Vai a um baile com ele, onde é desmascarada e reconhecida. Álvaro, ainda que surpreso, não se importa com o fato de ela ser uma escrava e resolve impedir que Leôncio a leve de volta, inclusive tentando comprá-la. Mas não consegue convencer o vilão, e este leva Isaura de volta ao cativeiro na fazenda. 
     Leôncio está praticamente falido e, com o objetivo de conseguir um empréstimo do pai de Malvina, consegue se reconciliar com a mulher, afirmando que Isaura é quem o assediava. Então, para punir Isaura, Leôncio manda que ela se case com Belchior, jardineiro da fazenda. Entretanto, Álvaro descobre a falência de Leôncio e compra a dívida dos seus credores, tornando-se proprietário de todos os seus bens, inclusive de seus escravos. No dia do casamento de Isaura, antes que se celebrasse a cerimônia, Álvaro aparece e reclama seus direitos a Leôncio. Vendo-se derrotado e na miséria, Leôncio suicida-se. Tudo termina, portanto, com a punição dos culpados e o triunfo dos justos.
     Como bem o sintetizou Carlos Alberto Vecchi: 
     “A estrutura narrativa de A Escrava Isaura segue o modelo folhetinesco das histórias românticas: para atingir seu ideal e obter o reconhecimento de todos, o herói tem que realizar uma jornada perigosa, onde a própria vida é colocada em risco. O Amor, epicentro onde se debatem o Bem e o Mal, torna-se a força motriz que conduz ao restabelecimento do equilíbrio e da felicidade a todos que, em momento algum, se deixaram intimidar pelos desmandos de Leôncio. O Mal extirpado (o suicídio de Leôncio) cede lugar ao Bem. E aqueles que nortearam suas ações pelas virtudes maiores é que estão aptos a receber o prêmio daí decorrente.” 
OS PERSONAGENS 
    A obra apresenta a tríade comum aos romances populares românticos: vilão, heroína e herói. E, graças à ausência de profundidade com que são construídos, os personagens do romance são planos, estáticos e superficiais. 
     Isaura, a heroína escrava, é branca, pura, virginal, possui um caráter nobre e demonstra “conhecer o seu lugar”: do princípio ao fim, suporta conformada a perseguição de Leôncio, as propostas de Henrique, as desconfianças de Malvina, sem jamais se revoltar. Permanece emocionalmente escrava, mesmo tendo sido educada como uma dama da sociedade. Tem escrúpulos de passar por branca livre, acha-se indigna do amor de Álvaro e termina como a própria imagem da “virtude recompensada”. 
      Vejamos como Guimarães descreve sua heroína: 
       “A tez é como o marfim do teclado, alva que não deslumbra, embaçada por uma nuança delicada, que não sabereis dizer se é leve palidez ou cor-de-rosa desmaiada. (…) Na fronte calma e lisa como o mármore polido, a luz do ocaso esbatia um róseo e suave reflexo; di-la-íeis misteriosa lâmpada de alabastro guardando no seio diáfano o fogo celeste da inspiração.”
     Leôncio é o vilão leviano, devasso e insensível que, de “criança incorrigível e insubordinada” e adolescente que sangra a carteira do pai com suas aventuras, acaba por tornar-se um homem cruel e inescrupuloso, casando-se com Malvina, linda, ingênua e rica, por ser “um meio mais suave e natural de adquirir fortuna”. Persegue Isaura e se recusa a cumprir a vontade de sua mãe, já falecida, que queria dar a ela a liberdade e alguma renda para viver com dignidade.
     Álvaro é um rico herdeiro, cavalheiro nobre e de caráter impecável, que “tinha ódio a todos os privilégios e distinções sociais, e é escusado dizer que era liberal, republicano e quase socialista”; um jovem de idéias igualitárias, idealista e corajoso para lutar contra os valores da sociedade a que pertence. Sua conduta moral é assim descrita pelo autor: 
     “Original e excêntrico como um rico lorde inglês, professava em seus costumes a pureza e severidade de um quacker. Todavia, como homem de imaginação viva e coração impressionaável, não deixava de amar os prazeres, o luxo, a elegância, e sobretudo as mulheres, mas com certo platonismo delicado, certa pureza ideal, próprios das almas elevadas e dos corações bem formados.” 
      Apaixonado por Isaura, o grande obstáculo que Álvaro precisa vencer é o fato de ser Isaura propriedade legítima de Leôncio. Para isso, vai à corte, descobre a falência de Leôncio, adquire seus bens e desmascara o vilão. Liberta Isaura e casa-se com ela, desafiando, assim, os preconceitos da sociedade escravocrata.
     Nos demais personagens o processo de construção é o mesmo. Miguel, pai de Isaura, foge do conceito tradicional do mau feitor. Quando feitor da fazenda de Leôncio, tratara bem aos escravos e amparara Juliana, mãe de Isaura, nas suas desditas com o pai de Leôncio. Pai extremoso, deseja libertar a filha do jugo da escravidão e não mede esforços para isso. 
     Martinho é o protótipo do ganancioso: cabeça grande, cara larga, feições grosseiras e “no fundo de seus olhos pardos e pequeninos,… reluz constantemente um raio de velhacaria”.  Por querer ganhar muito dinheiro entregando Isaura ao seu senhor, acaba por não ganhar nada. Já Belchior é o símbolo da estupidez submissa e também sua descrição física se presta a demonstrar sua conduta: feio, cabeludo, atarracado e corcunda. O crítico Manuel Cavalcanti Proença aponta “o parentesco entre o disforme e grotesco (de gruta) Belchior, e o Quasímodo de O Corcunda de Notre Dame, de Víctor Hugo, romance de extraordinária voga, ainda não de todo perdida, no Brasil.”
    O dr. Geraldo é um advogado conceituado, que serve como fiel da balança para Álvaro, já que procura equilibrar os arroubos do amigo, mostrando-lhe a realidade dos fatos. Quando Álvaro, revoltado com a condição de Isaura e indignado com os horrores da escravidão, dispõe-se a unir-se a ela, mesmo sabendo que escandalizaria a sociedade, Geraldo retruca lucidamente que a fortuna de Álvaro lhe dá independência para “satisfazer os teus sonhos filantrópicos e os caprichos de
tua imaginação romanesca”. O que não é, na verdade, característica restrita apenas à sociedade escravocrata do século XIX. 
Concessão ao preconceito? 
     Este romance já foi considerado, com bastante exagero, uma espécie de A Cabana do Pai Tomás (1851) nacional. Porém, Bernardo Guimarães, ao contrário da romancista americana Harriet Beecher Stowe, detém-se muito pouco na descrição dos sofrimentos provocados pelo regime escravocrata. Ele coloca, na boca de alguns personagens, como Álvaro e seus amigos, estudantes no Recife, algumas frases abolicionistas, mas parece tomar bastante cuidado em não provocar a fúria dos seus leitores conservadores. Está mais preocupado em contar as perseguições do senhor cruel à escrava virtuosa e, assim, conquistar a simpatia do leitor.
       Bernardo Guimarães faz questão de ressaltar exaustivamente a beleza branca e pura de Isaura, que não denunciava a sua condição de escrava porque não portava nenhum traço africano, era educada e nada havia nela que “denunciasse a abjeção do escravo”. O que parece uma escolha preconceituosa e contraditória – contar as agruras da escravidão criando uma escrava branca – talvez seja melhor compreendido se  levar em conta que a maior parte do público que consumia romances na época era composto por mulheres da sociedade, que apreciavam as histórias de amor.
    Somem-se a isso o modelo de beleza feminino de então, caracterizado pela pele nívea e maçãs rosadas do rosto e, principalmente, o objetivo do autor de conquistar a solidariedade do leitor pela escrava, mostrando a que ponto extremo poderia chegar o regime escravocrata: “fisicamente, Isaura não é diferente das damas da sociedade, mas, por ser escrava, é obrigada a viver como os de sua classe, como objeto útil nas mãos de seu senhor”, conforme afirma a crítica Maria Nazareth Soares Fonseca.
    O autor claramente conseguiu o que queria. A sociedade brasileira do século XIX, que tanto se apiedou das desventuras de Isaura, aceitou-a porque ela era branca e educada. O autor pôde, assim, demonstrar, através do seu sofrimento, o quanto “é vã e ridícula toda a distinção que provém do nascimento e da riqueza”. E é claro, a cor de Isaura serve, como afirma o crítico Antônio Cândido, “para facilitar a ação de Álvaro, compreensivelmente apaixonado e decidido a desposá-la, como fez.”
    Se houve influência, portanto, do romance A cabana do Pai Tomás, talvez tenha sido apenas no que o crítico Alfredo Bosi aponta como referência: a cena da fuga de Campos para Recife, “talvez sugerida pela fuga de Elisa através dos gelos flutuantes de Ohio para a liberdade no Norte e por fim no Canadá”. Entretanto, o fato é que, como aponta o crítico, só depois do lançamento de A cabana do Pai Tomás “a literatura brasileira começou a ser povoada de feitores cruéis e de escravos virtuosos”.
  A LINGUAGEM 
     O tratamento exageradamente romântico que o autor aplica neste livro faz com que ele tenha um caráter mais de lenda do que de realidade, ao contrário de seus outros romances, como O Ermitão de Muquém (1864),O Seminarista (1872) e O Garimpeiro (1872), em que a descrição regionalista do ambiente físico e social proporciona mais verossimilhança à trama.
    Em A Escrava Isaura, o excesso de imaginação se traduz em “idealização descabida”, como afirma Antonio Candido, que se concretiza no plano da linguagem em descrições repetitivas e mecânicas dos personagens, com  abuso de adjetivos redundantes. 
     Observe-se a descrição de Isaura quando senta-se ao piano no salão de baile no Recife:
    “A fisionomia, cuja expressão habitual era toda modéstia, ingenuidade e candura, animou-se de luz insólita; o busto admiravelmente cinzelado ergueu-se altaneiro e majestoso; os olhos extáticos alçavam-se cheios de esplendor e serenidade; os seios, que até ali apenas arfavam como as ondas de um lago em tranqüila noite de luar, começaram de ofegar, túrgidos e agitados, como oceano encapelado; seu colo distendeu-se alvo e esbelto como o do cisne, que se apresta a desprender os divinais gorgeios. Era o sopro da inspiração artística, que, roçando-lhe pela fronte, a transformava em sacerdotisa do belo, em intérprete inspirada das harmonias do céu.”
 O AMOR E A DONZELA INEXPUGNÁVEL 
     “Os motivos que compõem romance”, segundo Cavalcanti Proença, “são filiados nos velhos e perenes topos” – ou temas – “da literatura popular. O amor à primeira vista é um deles. Ver e amar é um verbo só. E isso porque a narrativa não é a história de um amor, mas dos sofrimentos do amor. (…) Para isso se entretecem os conflitos de escrava que não tem direito de amar, os do homem casado que não deve trair a esposa. (Amor verdadeiro só o primeiro.)”
    Entre esses temas, há um que remonta à literatura medieval e que domina a narrativa como um todo, a partir da descrição de Isaura como pura e virtuosa, lutando contra a luxúria do seu senhor. É o da donzela inexpugnável, que defende sua pureza com todas as forças de que dispõe, preferindo arriscar-se à morte na fuga a se entregar sexualmente. 
     Entre os precursores da literatura folhetinesca está o romancista e tipógrafo inglês Samuel Richardson (1689-1761). A sua novela Pamela, ou a Virtude Recompensada, publicada em 1741, certamente é uma das fontes de inspiração mais contundentes para a composição do romance de Bernardo Guimarães. Nessa obra, Richardson narra as desventuras de Pamela Andrews, filha de camponeses que é educada por uma senhora nobre que, ao morrer, a entrega aos cuidados de seu filho, o Conde de Belfart. Esse jovem inescrupuloso atenta contra a virtude de Pamela, assediando-lhe com ameaças vis e acaba por entregar-lhe a uma vulgar alcoviteira. Mas Pamela, como Isaura, consegue defender-se, mantendo intacta a sua honra. Acaba por comover com suas lágrimas abundantes o Conde de Belfart que, arrependido, termina se casando com a heroína.
    Bernardo Guimarães acrescenta à trama romanesca inventada por Richardson a figura do cavalheiro salvador Álvaro e a temática bem brasileira da escravidão.
    Também Castro Alves, o maior dos nossos escritores abolicionistas, refere-se à defesa da virtude das escravas, em poemas como Súplica, do livro Os Escravos (1883): 
“Que a donzela não manche em leito impuro
A grinalda do amor.
Que a honra não se compre ao carniceiro
Que se chama senhor.”

A Escrava Isaura - Estudo da Obra - fredb.sites.uol.com.br

 O SEMINARISTA
    Publicado em 1872, O seminarista é romance de linha pastoril na tradição da escola romântica. O autor recebe influência de Alexandre Herculano. É o “monasticon” brasileiro: romance contra o celibato clerical e a vocação forçada. Apesar das peripécias folhetinescas, tem um marcado substrato de Naturalismo e é, sob vários aspectos, precursor deste movimento, ao basear a caracterização das personagens nos fatores do meio e na constituição psicofisiológica. Bernardo Guimarães fala de Minas Gerais e Goiás, misturando a idealização romântica com elementos tomados da narrativa oral, na base do “contador de causos e de histórias” por ser adjetivosa e convencional, mereceu de Monteiro Lobato, outro “contador de causas”, a critica’que transcrevemos: “Ler Bernardo Guimarães é ir para o mato, para a roça, mas uma roça adjetivada por menina do Sião, onde os prados são amenos, os vergéis floridos, os rios caudalosos, as matas viridentes, os píncaros altíssimos, os sabiás sonoros e as rolinhas meigas. Bernardo falsifica o nosso mato".
     Nesta obra Bernardo Guimarães faz um típico romance de tese, querendo provar o equívoco do celibato religioso, que deforma o homem, e do autoritarismo familiar, que não permite ao jovem seu próprio caminho na vida. A obra trata de diferenças sociais e preceitos morais, bem ao gosto do autor de A Escrava Isaura.
    Apesar de sua dimensão melodramática, o romance apresenta uma das mais veementes críticas ao patriarcalismo, em toda a literatura do século XIX. 
Enredo
     Ambientado no interior de Minas Gerais, O seminarista narra o drama de Eugênio e Margarida, que, na infância, passada no sertão mineiro, estabelecem uma amizade que logo vira paixão. O pai de Eugênio, indiferente aos sentimentos do filho, o obriga a ir para um seminário. Dilacerado entre o amor e a religiosidade, Eugênio segue para o mosteiro. 
     Embora todo o sofrimento da perda amorosa, o jovem dedica-se à vida espiritual e acaba se ordenando sacerdote. Volta então à aldeia natal para rezar a sua primeira missa. Lá encontra a sua antiga paixão, Margarida, que está à beira da morte. Os dois não resistem ao impulso afetivo e mantêm relações. Em seguida, a heroína morre. Eugênio, ao saber da notícia, pouco antes de iniciar a missa, enlouquece de dor afetiva e moral, tanto pelo desaparecimento da amada quanto pela quebra do voto de castidade. 
Eugênio e Margarida são vitimas da arrogância e dos preconceitos de uma época que os faz viver tão tragicamente como Romeu e Julieta.


O Seminarista, de Bernardo Guimarães - Passeiweb - www.passeiweb.com

A TRADIÇÃO DIRETA DE O SEMINARISTA, DE BERNARDO GUIMARÃES          
     Luana Batista de Souza (FFLCH-USP)
1. Introdução
      O romance O Seminarista é uma das obras mais conhecidas do escritor mineiro Bernardo Guimarães, doravante BG. Foi publicado pela primeira vez em 1872, tratando-se de um texto de domínio público, de modo que sua edição não depende de autorização de herdeiros nem de pagamento de direitos autorais, podendo esta ser uma das razões pelas quais se verifica, desde a década de 1930, a circulação de dois textos diferentes da obra.
    Ao fazer o estudo da tradição desta obra, percebemos que ela possui um campo bibliográfico diversificado, apresentando além da edição do romance como ele é conhecido, uma adaptação em história em quadrinhos, publicada em 1955 pela Ebal e a versão condensada do texto, publicada pela Rideel em 2000, que tem como público-alvo estudantes do ensino médio.
    O primeiro passo na análise da tradição de um determinado texto consiste na recensão, o estudo das fontes, para isso é necessária sua localização e coleta. Ao coletarmos os testemunhos de O Seminarista a fim de estudar suas variantes, percebemos que era necessário, num primeiro momento, estudar mais a fundo estas fontes, uma vez que no período compreendido entre a publicação da edição príncipe (1872) e da primeira edição a veicular a redação curta (1931) há
um intervalo de cinquenta e nove anos, no qual foram publicadas dez edições. Deste modo, apresentamos neste artigo um breve estudo a respeito da cronologia das edições de O Seminarista mostrando sua importância para a colação.
     Este trabalho integra a dissertação de mestrado “O Seminarista, de Bernardo Guimarães: colação de variantes”, a ser defendida em breve, sob a orientação do Prof. Dr. Sílvio de Almeida Toledo Neto, junto ao Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
2. O Seminarista
    O Seminarista foi publicado em 1872, estima-se que em sua segunda metade devido às notícias sobre o romance publicadas em setembro e outubro daquele ano nos periódicos Diario do Rio e O
Mosquito. É considerado por Antonio Candido (1971) e Sílvio Romero (1960), como uma das obras mais importantes de BG. Destaca-se, sobretudo, pela descrição das paisagens:Quem leu O Seminarista não pode esquecer a várzea com o riacho, a ponte, a porteira de varas, as duas paineiras, os dois caminhos que levam à casa do Capitão Antunes e à da tia Umbelina, ao lado da figueira; não poderá sobretudo esquecer a utilização por assim dizer psicológica que o romancista deles faz, como cenário qualitativo dos amores de Eugênio e Margarida  – transformando-os numa paisagem subjetiva, variável na consistência e densidade. (CANDIDO, 1971, p. 239)
     O tema principal do romance é o celibato clerical, toda a ação desenrola-se em torno da paixão entre Eugênio, que foi estudar no seminário para ser padre, e Margarida, sua amiga de infância.
Foi um romance bastante lido em seu tempo, publicado duas vezes num intervalo de três anos, o que para os padrões da época era muito. Estas duas edições correspondem ao período em que BG estava vivo, todas as edições publicadas após 10 de março de 1884 são posteriores à sua morte.
     A partir da análise de suas edições, foi possível observar que foram publicadas duas redações do romance, uma longa e outra curta, abordadas brevemente em Souza (2010). Há entre elas grandes diferenças com relação ao texto, tais como omissão, substituição e adição de palavras, omissão e re-elaboração de trechos e parágrafos, de modo que se faz necessária uma edição crítica a fim de estabelecê-lo.
3. O estudo das fontes
    Em primeiro lugar, o que nos chama a atenção é a (co)-existência de dois textos do romance, sendo um longo e outro curto, facilmente encontráveis em sebos, livrarias e na internet, sendo nesta a ocorrência mais frequente do texto curto em sites que veiculam obras de domínio público, como www.dominiopublico.gov.br. A redação longa é a da edição príncipe e das edições ulteriores até o início do século XX, já a redação curta, pelo que é possível afirmar até o momento, foi publicada primeiramente pela editora Civilização Brasileira em 1931.
      A edição de 1872 de B. L. Garnier disponível na Fundação Biblioteca Nacional foi definida a priori como texto base por ser a editio princeps (edição príncipe), tendo em vista um dos princípios da Crítica Textual, a  lectio antiquior potior (a lição mais antiga é preferível), que considera o fato de que um testemunho mais antigo, por teoricamente distanciar-se menos do arquétipo do que um testemunho recente, teria mais probabilidade  de apresentar a variante genuína (CAMBRAIA, 2005, p. 151-152). Um pensamento que segue esta linha é o de Walter Wilson Greg (1950-1951, p. 29) no que diz respeito a textos impressos, para ele, a edição mais antiga é a que deveria ser eleita, uma vez que estaria mais próxima aos originais do autor.
     Contemplando a data de publicação do romance e sua grande popularidade, atualmente é praticamente impossível numerar as edições disponíveis no mercado, visto que além de se tratar de um texto de domínio público, ou seja, que dispensa a autorização dos herdeiros para sua publicação,  as editoras que o publicam, muitas vezes numeram as edições a partir de sua primeira e não a partir da edição príncipe. É este o caso das editoras Ática e Moderna. A primeira conta com vinte e oito edições, sendo que a mais recente data de 2000, já a última, de acordo com as informações disponibilizadas em seu site, a edição disponível para venda é a segunda, publicada em 2004, no entanto, é possível encontrar em bibliotecas e sebos, edições da Moderna publicadas pelo menos entre 1984 e 2006.
      Ainda que o campo bibliográfico da obra seja relativamente extenso, apresentando não só o texto publicado pelo autor como é conhecido, mas também adaptações, como a editada pela Ebal
Embora tenham sido publicadas duas edições enquanto BG estava vivo, optamos pela primeira edição como texto base por não haver entre ela e a segunda diferenças com relação ao texto. As diferenças que foram observadas referem-se às gralhas tipográficas.
    Exemplar conhecido ou hipotético de que se supõe terem derivado todas as espécies conhecidas. (FARIA & PERICÃO, 2008, p. 66) grupo formado pelas edições existentes de um texto. (CASTRO & RAMOS, 1986, p. 112)(em formato de história em quadrinhos e a versão condensada do texto, cujo público-alvo é composto por estudantes, publicada pela Rideel (2000), não há ainda uma edição crítica que tenha como objetivo o estabelecimento do texto, daí a necessidade de elaborá-la a partir do cotejo de diversos testemunhos. Embora até o presente momento não se tenha notícia de testemunhos manuscritos, não podemos descartar o surgimento de um manuscrito autógrafo que norteará a direção das investigações.
      Sobre o surgimento da redação curta, observamos que este não se sobrepôs ao da redação longa, uma vez que esta continuou a existir. O fato é que a redação curta acabou produzindo um novo ramo na tradição, mas que não impede que se retorne facilmente ao texto original a partir da redação longa. Deste modo, conforme dito anteriormente, este trabalho pretende mostrar a cronologia das edições desde a edição príncipe até a terceira edição a publicar a reda-
ção curta do romance em 1949, para isso apresentamos abaixo o esquema ilustrativo das edições estudadas, divididas de acordo com a redação que contém, curta ou longa. A partir da observação do organograma (fig. 1- Organograma das edições), reforça-se muito a hipótese de a redação longa ser a do texto original.
4. Considerações finais
    A partir do que foi exposto, vimos a importância do estudo das fontes para situar os testemunhos no tempo e também para compreender melhor a história do texto. Com a observação do organograma, fica clara a maneira como as edições estudadas estão divididas de acordo com o tamanho do texto publicado.
    O estudo da cronologia das edições, especificamente no caso da Garnier se mostra fundamental para a identificação e possível datação dos testemunhos, dado à falta de informações nos exemplares.
    Com relação às outras editoras, este estudo é importante na tentativa de compreender seu processo de edição no  final do século XIX e meados do século XX.
    Um dado importante em relação às edições, que deve ser considerado, é que todos os livros de Bernardo Guimarães, incluindo O Seminarista, foram publicados por B. L. Garnier, que comprou os direitos autorais do livro, prática pouco comum na época. Na década de 1930 a casa é vendida a um antigo assistente de Baptiste Louis Garnier, com todos os direitos autorais de valor (HALLEWELL,
2005, p. 268), o que poderia explicar por que em 1941, dez anos após a edição da Civilização Brasileira, não foi publicado o texto desta. Contudo, estranhamente a Livraria Martins publica, três anos depois, o mesmo texto da Civilização Brasileira, embora se tenha notícia de que F. Briguiet tenha vendido algumas obras para Martins. Na hipótese de que este seja o caso do nosso romance, como explicar a edição de texto curto?
    A respeito da redação curta do romance, podemos levantar algumas hipóteses: o texto não é de autoria de BG, visto que sua publicação ocorre cinquenta e nove anos depois da primeira edição, além disso, foram publicadas apenas duas edições quando o autor estava
vivo, a primeira em 1872 e a segunda provavelmente em 1875, ambas publicadas por B. L. Garnier e ambas com o mesmo texto. Pode se tratar então de um caso de alteração feita pela própria casa editorial, que teria como objetivo final o “enxugamento” do texto, visando
uma economia na produção do livro.


A TRADIÇÃO DIRETA DE O SEMINARISTA DE BERNARDO ..www.filologia.org.br.

0 comentários

Postar um comentário